Não é de hoje que os setores mais radicais da esquerda brasileira defendem a revisão da Lei de Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada há 34 anos pelo general João Figueiredo, o último presidente do governo militar instaurado em 1964. Mas, desde a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em novembro de 2011, para apurar graves violações aos direitos humanos no país entre 1946 e 1988, um sentimento revanchista parece estar vindo à tona com mais força do que nunca.
Amparado nos nobres fins da CNV, o bloco dos revisionistas tem difundido a ideia de que a anistia deveria valer apenas para um lado – o dos terroristas que recorreram às armas para enfrentar os militares e dos perseguidos pelo regime de forma geral – e não para aqueles que cometeram crimes a serviço do aparelho repressivo do Estado.
Na segunda-feira, em Porto Alegre, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, do PT, que patrocinou uma proposta com esse objetivo quando era ministro da Justiça de Lula e se tornou uma espécie de porta-voz do movimento, voltou a defender a revisão da anistia durante a primeira audiência pública da CNV neste ano. Inconformado com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2011, negou seu pedido e considerou “ininputáveis” os crimes cometidos por agentes do regime militar, Genro disse apostar que a Lei da Anistia “ainda pode ser mudada” e “vai ser mudada”.
É natural que, com o esclarecimento recente de muitas mortes ocorridas nos porões da ditadura, como as do jornalista Vladimir Herzog e do ex-deputado Rubens Paiva, os familiares das vítimas e seus amigos e admiradores queiram não apenas que os responsáveis sejam identificados, mas punidos de forma exemplar. A tortura é, sob qualquer circunstância, abominável. É algo que não pode e não deve ser tolerado por uma sociedade democrática, como a que se pretende construir no Brasil. Para evitar que a tortura volte a manchar a história do país, a sociedade deve se valer de todos os instrumentos legais necessários e disponíveis. Não só para proteger os envolvidos nos chamados “crimes de consciência”, mas também os criminosos comuns, hoje os mais expostos à tortura, que, apesar de ter se tornado crime, ainda sobrevive em distritos policiais de todo o país.
É preciso levar em conta, porém, que, no Brasil, a anistia foi “ampla, geral e irrestrita”, ao contrário do que aconteceu em alguns de nossos vizinhos latino-americanos. Envolveu o “perdão” mútuo. Em nome da pacificação dos espíritos, os ressentimentos das duas partes foram deixados de lado. Assim como os terroristas que assaltaram bancos e mataram foram perdoados pela sociedade, os crimes do regime militar também o foram – e foi isso, em boa medida, que permitiu à democracia brasileira prosperar, num ambiente de liberdade política sem precedentes na história do país.
>> Francisco Weffort: “O PT se desnaturou completamente”
A maior prova disso é eleição da presidente Dilma Rousseff para o cargo, num clima de absoluta normalidade democrática, sem que sua ascensão tenha provocado quarteladas ou manifestações explícitas de resistência na caserna. Militante de organizações terroristas nos anos 1970 e condenada a dois anos e meio de prisão por subversão, com base na Lei de Segurança Nacional, então em vigor, ela hoje ocupa o Palácio do Planalto e, por força do posto, é a comandante-em-chefe das Forças Armadas. Se não por qualquer outra razão, isso já seria por si só um símbolo incontestável do papel preponderante que a Lei da Anistia exerceu no desenvolvimento da vida política do país.
Por mais dolorido que o perdão possa parecer para ambos os lados, não há nada que justifique a insistência na revisão Lei da Anistia agora, mesmo depois de a ideia ter sido derrotada no STF. Não faz qualquer sentido jurídico querer “desperdoar” aquilo que foi “perdoado”. Isso não existe. O revanchismo de um lado pode levar ao revanchismo de outro. Pode trazer de volta velhos fantasmas que já não refletem o Brasil de hoje e colocar em risco o avanço democrático das últimas décadas.
Como afirmou recentemente em entrevista a ÉPOCA o cientista político Francisco Weffort, ex-ministro da Cultura de Fernando Henrique e ex-secretário geral do PT, a democracia brasileira evoluiu muito neste período, mas não está consolidada. Por isso, em vez de cutucar os que estão hoje na posição de perdedores, abrindo feridas ainda não totalmente cicatrizadas, aqueles que se julgam vencedores do processo de redemocratização do país, como Tarso Genro, deveriam aceitar a anistia como “cláusula pétrea” da democracia brasileira e parar, de uma vez por todas, de clamar por sua revisão. Afinal, é graças a ela que eles estão hoje por aí, vociferando livremente seus pontos de vista.
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