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“Estou na lista negra de Putin” Em entrevista exclusiva realizada em Moscou em 2011, o líder oposicionista Boris Nemtsov, assassinado nesta sexta-feira, parecia prever o seu triste fim e afirmou que não tinha medo de criticar o presidente do país

Durante uma viagem de quase um mês que fiz a Rússia em agosto e setembro de 2011, para produzir o especial de 20 anos de queda do comunismo publicado pela revista Época (confira nos links abaixo), tive a oportunidade de conhecer e de entrevistar o líder oposicionista russo, Boris Nemtsov, de 55 anos, assassinado no centro de Moscou nesta sexta-feira.

Na amistosa conversa que tivemos, de quase duas horas, realizada num final de tarde num bar moderninho de Moscou, Nemtsov, um liberal que chegou a ser vice-primeiro ministro da Rússia em 1998, falou sobre as dificuldades da oposição, o autoritarismo de Vladimir Putin, então o primeiro-ministro e hoje o presidente do país, e sobre a economia russa.

Um dos poucos políticos que ousaram desafiar a supremacia de Putin, que se mantém há 15 anos no poder, Nemtsov acabava de ser libertado da prisão, depois de passar alguns dias detido sob a acusação de promover “atos extremistas” contra o regime. “Eu estou na lista negra de Putin”, disse Nemtsov a Época, como se estivesse prevendo o triste fim que o aguardava.

ÉPOCA – O senhor é um dos líderes da oposição na Rússia. Qual é a sua visão sobre o processo político do país? Mudou muita coisa desde o fim do comunismo, em 1991?
Boris Nemtsov – A Rússia é um típico país autoritário. Não tem eleições transparentes, não tem competição política, nem um parlamento de verdade, independência da Justiça. O que temos é uma imitação. Em 4 de dezembro (de 2011), haverá as chamadas eleições parlamentares, mas não é uma eleição de verdade, porque só o partido do (Vladimir) Putin (hoje presidente da Rússia e então primeiro-ministro) tem chance de alcançar maioria constitucional. O que temos é um sistema de partido único e de pequenos partidos para os quais ninguém dá a mínima. Parece a reencarnação da União Soviética, mas com certa dose de economia privada, com uma liberdade econômica limitada.

ÉPOCA – O senhor diz que a Rússia só tem o partido do Putin, o Rússia Unida, mas há representantes da oposição no Parlamento. Não há um certo exagero nisso?
Nemtsov – Temos uma oposição consentida. Parte da oposição não consegue se registrar, não tem possibilidade de participar das eleições, não só parlamentares, mas presidenciais. É por isso que temos um capitalismo corrupto, falso, com o mesmo nível de corrupção de Venezuela, Serra Leoa, Zimbabwe. De acordo com a Transparência Internacional, a Rússia está na posição 154 no ranking mundial de corrupção, junto com esses países africanos e de outras partes do mundo.

ÉPOCA – Até que ponto o Putin é responsável por essa situação?
Nemtsov – A responsabilidade do Putin nesse estado de coisas é de 100%. Ele restringiu a liberdade de expressão, cancelou eleições, marcadas por manipulação e fraude, nacionalizou as indústrias de petróleo e gás e a TV. Fez de tudo para ter controle burocrático sobre a economia. Ele parece um pouco mais esperto que Hugo Chávez (ex-presidente da Venezuela), mas a linha é a mesma. Parece com o Chávez, mas é um pouco mais esperto.

ÉPOCA – Em sua opinião, como o Putin consegue se manter no poder após tantos anos?
Nemtsov – O problema do país é que temos um volume ilimitado de petróleo e gás. Essa é a razão pela qual o Putin é popular. O preço do petróleo está nas alturas (ele se refere ao final de 2011 quando a entrevista foi realizada). É por isso que esse sistema corrupto, que é muito caro, ineficiente, sobrevive. Em segundo lugar, é preciso levar em conta também a máquina de propaganda oficial A TV que está em primeiro lugar em audicência está sob controle do Putin. Todos os dias às primeiras horas da manhã garotos-propaganda explicam que o Putin é o melhor, um patriota, que é o sujeito mais corajoso e honesto da face da Terra. Isso todos os dias, dezenas de vezes seguidas. Eu estou na lista negra de Putin. É totalmente proibido mostrar o Nemtsov na TV. A única opção para mim é estar na internet e em pequenos jornais e estações de rádio.

“A economia da Rússia parece a de uma ‘republiqueta de banana”. Tudo depende do petróleo e do gás”

ÉPOCA – Nas pesquisas de opinião, o Putin aparece sempre com grande popularidade. Como o senhor explica isso?
Nemtsov – As pessoas estão ficando cansadas depois de 12 anos de Putinismo (em 2011). Aos poucos, a popularidade de Putin vem caindo. Entre 2010 e 2011, ele perdeu 12 pontos percentuais de sua popularidade e acredito que ela vai cair ainda mais. As pessoas estão cansadas de corrupção. Os amigos de Putin se tornaram bilionários internacionais. Pessoas que trabalhavam na KGB (a antigo e temido serviço secreto soviético) se tornaram grandes empresários, que controlam antigas propriedades do Estado, não apenas no nível federal, mas também em nível regional. É a mesma coisa que na época da União Soviética. A maioria dos bilionários veio de negócios com commodities, exportações de petróleo, gás, minérios, químicos, petroquímicos. Eles ficaram muito ricos depois da privatização e também por causa da troca de empréstimos por ações usadas na privatização. A maioria fez dinheiro com commodities. A nova geração às vezes faz sucesso no mercado imobiliário, no varejo. Mas os maiores titãs formaram suas fortunas com privatização e commodities.

ÉPOCA – Não houve uma melhoria do nível de vida da população desde a queda do comunismo?
Nemtsov – Há uma enorme polarização entre pobres e ricos. Nós temos mais de 100 bilionários e 25 milhões de pessoas muito pobres com renda de 2 ou 3 dólares por dia. O terceiro ponto é que a economia da Rússia parece a de uma “republiqueta de banana”. Tudo depende do óleo e do gás. A alta tecnologia está fora da Rússia e a indústria, também. Muitas pessoas perderam seus empregos logo depois do comunismo e entendem que a única oportunidade para sobreviver é estar perto do poder, de burocratas. Um dos maiores problemas hoje é a falta de oportunidades de ascensão social para os jovens. Eles não têm oportunidade de carreira, de sucesso profissional. É por isso que 45% dos jovens querem emigrar, de acordo com pesquisas de opinião. No geral, 25% dizem que é por causa da falta de perspectivas para o futuro. É por isso que o sentimento geral das pessoas é negativo. Em termos de segurança, na Rússia do Putin o terrorismo cresceu por causa da falta de solução para o problema do Cáucaso. Não apenas na Chechenia, mas no Daguestão,em todas as regiões no Cáucaso. Não são terrorista da Al-Qaeda, mas bandidos e grupos do Cáucaso, que controlam essa região. O aumento do terrorismo é um dos símbolos da época de Putin.

“As pessoas têm muito medo de criticar Putin. Eu não. Não sei por quê. Talvez porque o conheça”

ÉPOCA – Com tudo isso, por que a oposição ao Putin não cresce?
Nemtsov – As pessoas têm muito medo de criticar Putin. Eu não. Não sei por quê. Talvez por que o conheça. E o Putin tem muito medo de pessoas que têm suas próprias idéias e ideologia. Porque a ideologia dele é só dinheiro, negócios e corrupção. Ele não aceita que há outros que acreditam na liberdade, nos direitos humanos, no império da lei e na livre iniciativa. Esse tipo de ideologia, uma mentalidade de estilo europeu, representa uma grande ameaça para o Putin. Ele acredita que os liberais são as maiores ameaças para ele, porque é impossível comprá-los. Ele acredita que pode comprar todo mundo não apenas na Rússia, mas fora também. É a chamada Schroderização, em referência a Gerhard Schroeder, o ex-chanceler alemão, que agora é um empregado da Gazprom (o mamute estatal de gás russo). Ele comprou o Schroder. E acredita que pode comprar todo mundo.

ÉPOCA – E o (Dmitri) Medvedev (então presidente e hoje primeiro-ministro da Rússia), não é diferente, não representa uma renovação na política russa?
Nemtsov – O Medvedev é um blogueiro famoso. Ele não é presidente. É como o irmão caçula de Putin. É por isso que ele foi seu sucessor, nomeado. É por isso que o Putin não se preocupa muito com ele. É por isso que ele não será candidato à reeleição para a presidência na próxima eleição (em dezembro de 2011). Seu futuro depende 100% da decisão de Putin.

ÉPOCA – O senhor e seu partido (o Partido da Liberdade Popular) foram proibidos pela Justiça de participar das eleições gerais da Rússia (no final de 2011). Ainda há possibilidade de isso se reverter?
Nemtsov – Nós entramos na Justiça agora, mas não há sistema judicial de verdade na Rússia. O Putin destruiu a Justiça e sistema judiciário.A lei nesse país é a seguinte: se você é amigo do Putin, você pode fazer o que quiser. Se é inimigo do Putin, vai para a cadeia. Isso é muito perigoso. Mas nós acreditamos que a Justiça européia ainda existe. Então, entramos como uma ação na corte de Strasburgo. Se a Rússia tivesse independência judicial, não precisaríamos disso. O que vamos fazer também é organizar campanhas contra a manipulação e a fraude nas eleições, do tipo “Vote pela Rússia, vote contra todo mundo”. Eu fui preso duas vezes em São Petersburgo em agosto (2011), porque eles disseram que isso era ilegal. Eles dizem que proclamar a idéia de que você é contra todo mundo é extremismo, de acordo com a lei de Putin. Mas temos o apoio de intelectuais, como poetas, escritores, jornalistas, ativistas políticos, militantes, para salvar a Rússia, protegê-la contra a corrupção e contra os burocratas. Se você quiser ser independente, não conseguirá o seu registro, como eu. Eles não querem que o povo russo saiba a verdade. Eles só estão interessados no seu poder, no seu dinheiro e nos seus negócios.

“Para eles, eu sou um espião americano, um espião coreano, um espião chinês. Essa tradição veio da época do Stálin. Todo mundo que é contra o poder constituído é espião”

ÉPOCA – Quer dizer que, com o fim do comunismo, não mudou muita coisa em termos de liberdade de organização e de expressão na Rússia?
Nemtsov – Se você olhar para a história da Rússia, tivemos pouquíssimos momentos de liberdade. Aconteceu talvez pela primeira vez durante o império de Alexandre II, em 1861, que foi assassinato por isso. A segunda vez foi depois da primeira revolução russa de 1905 a 1917. Depois que os bolcheviques passaram a controlar o país houve 100% de ditadura – e não apenas com Stálin. A Perestroika (abertura política) deu mais uma chance, que começou 1985 e terminou em 2000, quando Putin se tornou presidente. É por isso que, em 1.000 anos de história, a Rússia teve apenas umas poucas décadas de liberdade. Na Rússia, as pessoas não fazem a conexão entre liberdade e qualidade de vida. É por isso que os russos não se importam com isso. Há também a propaganda oficial. O Putin diz: qual foi o resultado da Perestroika? Vocês ficaram mais e mais pobres. Qual foi o resultado da democratização com o (Boris) Yeltsin (primeiro presidente da Federação Russa após o comunismo, morto em 2007). A democracia significa crise, pobreza, desestabilização. A democratização do país não é uma corrida de 100 metros. É uma maratona. Lutar contra a corrupção no poder é uma maratona. As pessoas estão muito assustadas, têm medo de perder seus empregos, perder oportunidades de carreira. Eu entendo isso. Mas felizmente há milhões de pessoas que acreditam em liberdade nesse país. Mesmo depois das pressões, da propaganda, da mentalidade soviética. Mas as pessoas têm medo de que seja muito demorado para esperar. Esse é o ponto.

Confira a entrevista de Boris Nemtsov publicada no site da revista Época

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