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“Elas cometeram uma blasfêmia” O arcipreste da Igreja Ortodoxa Russa, Vsevolod Chaplin, defende a condenação das garotas da banda Pussy Ryot e diz que a liberdade de expressão deve ter limites éticos, ligados aos valores morais da sociedade

O julgamento das garotas da banda russa Pussy Riot, condenadas a dois anos de prisão por causa de uma performance realizada num templo de Moscou, gerou uma onda de protestos pelo mundo e reforçou a percepção de que a democracia na Rússia se tornou uma quimera. Mais que tudo, talvez, o caso mostrou o poder crescente alcançado pela Igreja Ortodoxa Russa no país. Suas críticas contundentes à manifestação artística das meninas foram decisivas para selar o destino delas nos tribunais. Vinte anos após o fim do comunismo, a Igreja Ortodoxa conseguiu recuperar boa parte da influência que tinha na vida política e na sociedade nos tempos do czarismo. Com trânsito livre junto ao presidente, Vladimir Putin, e ao primeiro-ministro, Dmitri Medvedev, os ortodoxos têm obtido concessões significativas do governo, em especial em questões morais. Dois exemplos: a aprovação recente de restrições ao aborto, considerado um direito das mulheres na antiga União Soviética, e as seguidas proibições à realização da Parada Gay em Moscou.

À frente dessa cruzada moralista, o arcipreste Vsevolod Chaplin, porta-voz da Igreja Ortodoxa Russa e responsável pelo departamento de relações com a sociedade do Patriarcado de Moscou, joga duro. Recentemente, chegou a dizer que “as mulheres russas se vestem como prostitutas” e a defender a adoção de um código para regular a forma de se vestir na Rússia. Em entrevista a ÉPOCA, o arcipreste – cargo honorífico dado a um sacerdote ortodoxo – afirma que as meninas do Pussy Riot “cometeram uma blasfêmia” e diz que “a liberdade de expressão deve ter limites éticos, ligados aos valores morais da sociedade”. Chaplin fala também sobre a preocupação social da Igreja Ortodoxa na Rússia e sobre sua vinculação com o antigo regime czarista. “É verdade que, nos séculos XVIII e XIX, a igreja era muito envolvida com a máquina do Estado e não tinha liberdade suficiente e recursos intelectuais para atuar de maneira ativa pelas questões sociais.”

ÉPOCA – Como o senhor viu a manifestação das meninas do Pussy Riot na Catedral do Cristo Salvador, em Moscou?
Vsevolod Chaplin – Elas cometeram uma blasfêmia. Fizeram uma encenação imoral e criticaram o senhor Putin. Mas não foi isso que causou uma reação tão violenta dos que seguem a religião ortodoxa russa. Foi a violação de uma igreja, o uso do nome de Deus em vão, com palavrões de todos os tipos. Sob essa ótica, é até natural que tudo tenha acontecido.

ÉPOCA – A condenação das meninas a uma pena de dois anos de prisão não foi um exagero?
Chaplin – Depois da sentença, o Conselho Superior da Igreja Ortodoxa Russa pediu clemência a elas, mas, ao mesmo tempo, disse que a decisão do tribunal deverá impedir ações semelhantes no futuro. Acredito que a decisão do tribunal terá um efeito preventivo, para que essas blasfêmias não se repitam.

ÉPOCA – No Ocidente, muita gente interpretou a prisão e a condenação delas como um sinal de autoritarismo do regime e uma restrição à liberdade de expressão na Rússia. O senhor concorda?
Chaplin – A liberdade de expressão deve ter limites éticos, ligados aos valores tradicionais e morais da sociedade. A sociedade ocidental tem sofrido muito por ter removido quase totalmente os limites morais. Ninguém deve ter liberdade para violar uma igreja e associar o nome de Deus a palavras de baixo calão e blasfêmias.

ÉPOCA – Algum tempo atrás, o senhor chegou a defender a proibição nas escolas de livros de grandes escritores, como Lolita, do russo Vladimir Nabokov (1899-1977), publicado em 1955, e Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, publicado em 1967. Por quê?
Chaplin – A popularização desses romances nas escolas não fará com que nossa sociedade seja mais feliz do ponto de vista moral. Eles romantizam as relações sexuais entre adultos e crianças. A Rússia, hoje, precisa de uma revolução moral – ou uma contrarrevolução, se você preferir.

ÉPOCA – O senhor também já criticou o uso de minissaias e disse que as mulheres russas se vestem e se maquiam como prostitutas…
Chaplin – Não somente as mulheres. Os homens também. Um homem que sai por aí de shorts, camiseta e tênis não é digno de respeito. Isso não é uma atitude adequada em nenhuma sociedade que respeita a si mesma e aos outros. A forma de as pessoas se vestirem tem de ser mais bem discutida pela sociedade. Elas não devem ficar meio nuas em público, como costuma acontecer no verão em Moscou. Na Rússia, hoje, a maioria da população apoia a ideia de regular a forma como as pessoas se vestem. No começo dessa discussão, muitos diziam que isso era uma questão fechada e que cada um deve ter a liberdade de se vestir como quiser. Mas essa não é uma questão puramente pessoal. O comportamento das pessoas nos espaços públicos não é um problema só delas. Não seria nada mau se as empresas, as escolas e as universidades tivessem seus próprios códigos de vestimenta.

“Pedimos clemência às meninas. Mas, ao mesmo tempo, acreditamos que a decisão do tribunal terá um efeito preventivo, para que essas blasfêmias não se repitam”

ÉPOCA – Em relação a questões como o divórcio e o aborto, qual é a posição da Igreja Ortodoxa Russa?
Chaplin – Nossa posição é muito próxima da posição do Vaticano. Lamentamos cada divórcio, embora aceitemos a realização de segundo e terceiro casamentos. Ao mesmo tempo, nossa igreja faz o possível para preservar e restaurar as famílias que enfrentam problemas. Agora, se as famílias não existem mais, a igreja dá sua bênção a quem quiser realizar segundo e terceiro casamentos. Em relação ao aborto, negociamos com o governo, especialmente com o Ministério da Saúde, e com parlamentares uma revisão da lei de saúde pública. Algumas de nossas solicitações foram atendidas, como a obrigatoriedade de um período de reflexão antes da realização do aborto. A nova lei obriga a um período de reflexão obrigatório de dois a sete dias entre a mulher se apresentar para fazer o aborto e sua realização propriamente dita, conforme o período de gravidez. Também propusemos que as pílulas anticoncepcionais não sejam vendidas sem uma receita médica. Hoje, elas podem ser compradas até pela internet, sem nenhum controle.

ÉPOCA – A que o senhor atribui a força adquirida pela Igreja Ortodoxa Russa hoje?
Chaplin – Na era soviética, a vida religiosa não desapareceu por completo. Os comunistas conseguiram se livrar dos empresários, dos latifundiários e dos filósofos não comunistas, mas não conseguiram exterminar a igreja, como a Coreia do Norte e a Albânia. É claro que o espaço da igreja era muito limitado, mas algumas paróquias continuaram funcionando. Elas ficavam superlotadas, em todas as missas. Mesmo os líderes do comunismo batizavam secretamente seus filhos, promoviam cerimônias religiosas e realizavam serviços funerários na igreja. Hoje, não podemos dizer que a maioria absoluta da população esteja envolvida em práticas religiosas. Isso acontece em poucos países. Mas acredito que um número significativo de pessoas na Rússia tem alguma prática religiosa. Uma pesquisa mostrou que cerca de 30% da população ao menos de vez em quando vai à igreja. Isso é muito diferente da situação anterior, mas ainda há muito a fazer nesse aspecto.

ÉPOCA – Qual é o principal desafio da Igreja Ortodoxa Russa hoje?
Chaplin – Nosso maior desafio está relacionado à postura ética da sociedade. Nos campos da vida pessoal, da economia, da política, muitas vezes não há nenhum limite ético. Isso está acontecendo porque, por diversas gerações, as pessoas na Rússia foram privadas de qualquer discussão sobre a importância da ética. Eram forçadas a seguir a moralidade comunista. Quando o Estado falhou em implementar a moralidade, muitas passaram a achar que era um vale-tudo. Anos atrás, nossa igreja criou um Conselho especial para lidar com a questão da ética econômica e da justiça social. A diferença hoje entre ricos e pobres é totalmente novo, depois de décadas em que as pessoas viviam com relativa igualdade. É um fenômeno chocante, especialmente para os mais velhos. Na Rússia, não temos muitos lugares em que as pessoas vivem na pobreza absoluta, como em algumas áreas do Brasil, mas até em Moscou temos pessoas que moram em apartamentos modernos, e pessoas vivendo muito modestamente. A diferença de renda é muito séria. É um dos grandes problemas da sociedade, em que a ideia de justiça – em especial de justiça social – está muito viva e é bem compreendida. Outro problema sério é a falta de confiança nos agentes econômicos. Muitos novos-ricos ganharam seu dinheiro de forma criminosa e desonesta, subornando altos funcionários do Estado, que lhes permitiam fazer fortuna rapidamente comprando a preços baixos as gigantescas indústrias soviéticas privatizadas. É claro que as pessoas se lembram de tudo isso e que essa confiança entre as duas partes deve ser restaurada de qualquer forma. Isso significa que os negócios precisam ser socialmente responsáveis, devem provar que trazem benefícios para as pessoas, e não só para alguns empresários.

ÉPOCA – Essa postura social da Igreja Ortodoxa é algo novo. Antes da revolução, a igreja tinha uma estreita relação com a aristocracia, o czar e a família real. Não havia preocupação com as questões sociais…
Chaplin – No início do século XX, antes da Revolução Bolchevique, havia muita reflexão social na igreja, havia filantropia religiosa. De certa forma é verdade que, nos séculos XVII a XIX, a igreja era muito envolvida com a máquina do Estado e não tinha liberdade suficiente nem recursos intelectuais para atuar de maneira ativa pelas questões sociais. Agora, os próprios desafios da época atual empurram a igreja para desenvolvimento do pensamento social. Em 2000, o Conselho de Bispos da Igreja na Rússia lançou um livro chamado A essência da doutrina social da Igreja Ortodoxa da Rússia. Trabalhamos nesse documento durante seis anos – eu era secretário do grupo de trabalho. O documento fala de muitas coisas, a igreja e a nação, a igreja e o Estado, economia, política, ética, guerra e paz.

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